quarta-feira, abril 08, 2009

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Vergonha


"Num mundo em que há migalhas e esperdícios,

pratos cheios de restos enfastiados

e bocas que salivam sem ter pão;

e em que há crianças tristes, maltrapilhas,

que não terão nem livros nem recreios

nem mesmo infância no seu coração;

num mundo onde os enfermos são tratados

com a caridade irônica dos homens

proprietários dos próprios hospitais;

onde alguns já nasceram infelizes

e hão de viver sem segurança e paz,

sem meios de lutar, abandonados,

e outros, trazem do berço as regalias

que hão de inutilizar, despreocupados;

num mundo, onde há mãos cheias, trasbordantes,

e há mendigando, pobres mãos vazias;

onde há mãos duras, ásperas, cansadas,

e suaves mãos inúteis e macias;

onde uns têm casas grandes, com jardins,

e outros, quartos estreitos, sem paisagem;

num mundo onde os artistas prisioneiros

fazem "roda" nos mesmos quarteirões

sonhando sempre uma impossível viagem;

E há homens displicentes, nos navios,

carregando "kodaks" distraídas

que têm mais alma que os seus olhos frios,

num mundo onde os que podem não têm filhos

e os que têm filhos, quase sempre lutam

porque não podem constituir um lar.

num mundo, onde ao mais leve olhar humano

vê-se que não há nada em seu lugar.

e onde, no entanto, fala-se em Direito,

em Justiça, em Razão, em Liberdade;

num mundo onde os que plantam, pouco colhem

e os que colhem, não sabem, na verdade,

de onde vêm as colheitas que consomem;

num mundo, onde uns jejuam muitos dias

e outros, por vício, muitas vezes comem,

Sinto a angústia fatal de ter nascido

e a suprema vergonha de ser homem!

Poema de J.G.de Araújo Jorge

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