quarta-feira, dezembro 28, 2011

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Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

......
.........

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

.......
.......
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


de Carlos Drummond de Andrade

2 comentários:

mfc disse...

Deixamos sempre um pouco de nós por onde passamos!

Anónimo disse...

A vida toda é partilha.

Não ficamos vazios por deixarmos um pouco ou muito de nós, porque também nos vamos preenchendo com o que convivemos.

É isso que nos faz crescer...empurrar os nossos limites para o mais além.

...e às vezes faz doer.

Faz doer porque entranhar outra diversidade diferente da nossa, confortável ou não, mas conhecida, intima, familiar, nem sempre é pacifico no nosso habitat emocional que fica "ofendido" com a invasão do seu território.

Beijos de irmã!